A segurança rodoviária e a responsabilidade coletiva
Os factos são claros! O corpo humano não foi concebido para resistir a impactos nas velocidades a que hoje conseguimos deslocar-nos. O conceito de excesso de velocidade pode ser visto sob duas perspetivas:
- Pelo prisma legal – ultrapassar um limite pré-definido para uma determinada via.
- Pelo prisma biológico – tendo em conta a capacidade real de resistência do corpo humano.
Esta segunda abordagem levanta questões fundamentais sobre segurança e prevenção, e é nela que quero focar-me hoje.
Diferentes perspetivas sobre a sinistralidade rodoviária
Muitas vezes, a sinistralidade rodoviária é analisada de forma tradicional, com uma visão limitada que se concentra no acidente em si, sem considerar as causas estruturais ou as possibilidades de prevenção. Esta visão reflete-se em diferentes pontos:
- Foco no acidente como um evento isolado, analisado sob uma ótica economicista por seguradoras e autoridades, limitando-se aos custos visíveis da colisão.
- Atribuição da responsabilidade exclusivamente ao condutor e à sua conduta ao volante.
- Carga máxima de culpa sobre o indivíduo, ignorando fatores externos como infraestrutura e políticas públicas.
- Hiper-regulação da indústria, sem incentivo real para inovação e melhoria contínua.
- Adaptação do indivíduo ao sistema, em vez de adaptar o sistema ao ser humano.
- Dependência da sorte, com afirmações como “não há dois acidentes iguais”, promovendo um sentimento de fatalismo.
Vision Zero: Uma abordagem baseada na prevenção e cooperação
O que aprendi, tanto na formação Vision Zero (junho, Gotemburgo) como das conclusões saídas agora da conferência de Marrocos (fevereiro, Marraquexe), reforçou uma ideia essencial: a responsabilidade pela segurança rodoviária é sempre coletiva. Cada pessoa tem um papel determinante, e as decisões de hoje terão impacto intergeracional.
Para que a Vision Zero se torne uma realidade, é essencial ter em conta os seguintes princípios para promover mudanças comportamentais:
1. Foco na lesão, não apenas no acidente
Compreender como as lesões ocorrem é fundamental para prevenir mortes e minimizar danos. Na Suécia, as seguradoras desempenham um papel ativo nestes processos, pois sabem que, embora os acidentes possam continuar a acontecer, o objetivo real é reduzir as mortes e as lesões graves ou irreversíveis.
2. Sistemas eficazes, independentemente das práticas individuais ou erro humano
A tecnologia deve compensar as falhas humanas. O airbag, por exemplo, surgiu como solução para motoristas que não utilizavam o cinto de segurança. Precisamos de mais inovações que tornem as estradas seguras apesar dos erros humanos.
3. Responsabilidade partilhada
A segurança rodoviária deve ser integrada em todas as áreas da sociedade, incluindo nas normas de segurança no trabalho. Na Suécia, 1 em cada 2 mortes na estrada ocorre em contexto laboral. Estes dados são provavelmente semelhantes em outros países, reforçando a necessidade de uma abordagem sistémica.
4. Indústria incentivada, não apenas punida
As regulamentações são importantes, mas o incentivo à melhoria contínua gera mudanças mais eficazes. O Euro NCAP é um exemplo positivo: estabelecendo padrões de segurança, estimula a indústria automóvel a inovar.
5. Adaptar o sistema ao ser humano
Somos humanos, estamos sujeitos a fadiga, distrações e falhas. Os sistemas de segurança devem ser concebidos tendo isso em consideração. Grandes marcas da indústria automóvel já estudam o comportamento humano para desenvolver soluções em que o sistema auxilia o indivíduo – alertas sonoros, sistemas de travagem ativos, entre outros, são exemplos disso.
Adaptar o sistema ao indivíduo é, no fundo, o que já se materializa em exemplos como a Fórmula 1, com as estruturas completamente personalizadas nos veículos ou com o Hans, dispositivo acoplado ao capacete que protege de lesões cervicais em caso de sinistro.
Precisamos fomentar esta prática também nos sistemas de retenção infantil, atualmente limitados pelo uso de bonecos de teste que pouco ou nada refletem a biomecânica real das crianças.
6. Aprender com cada sinistro
A evolução da segurança rodoviária depende de uma cultura de aprendizagem contínua. Autoridades, seguradoras e profissionais de saúde devem trabalhar em conjunto, partilhando informação para compreender padrões de sinistralidade e desenvolver soluções preventivas eficazes.
Nenhuma vida perdida na estrada é justificável
A vida humana não tem preço. Cada morte na estrada é uma morte a mais. A Vision Zero não é uma utopia, mas sim um compromisso real de repensar a segurança rodoviária através de uma abordagem coletiva e proativa. Precisamos de agir hoje para garantir um futuro onde nenhum acidente seja considerado inevitável.